quinta-feira, 17 de março de 2011

Ah, como é belo o mar


Imensidão azul, horizonte pleno, grandeza celestial. Lembro que contemplei extasiado aquela primeira vista. Naquele momento as lembranças das palavras de Padre Janeiro emergiram em minha mente, antes não entendia o sentido de determinadas explicações de meu preceptor, aos poucos tais explanações tornavam-se claras. Aquelas compreendi no determinado instante em que enxerguei aquele oceano: "Nós somos a essência divina, o micro que se unirá ao macro. Como por exemplo o mar, se retirarmos uma gota dele, naquela ínfima parte estará contido todas as propriedades existentes no mar, contudo, não é o mar."


Impossível compreender tal exemplo sem conhecer aquela infinitude. Não pude conter a emoção com a nova compreensão, a saudade de Padre Janeiro já era sentimento constante. Dantes de continuar o relato que segue, preciso proclamar um ato de justiça com meu mestre. Eu ainda não descrevi aos meus possíveis leitores (se é que terei algum) algumas características marcantes daquele grande ser. Padre Janeiro era um homem de no máximo 1,70m de altura, brasileiro genuíno, era impossível identificar sua procedência, descendência. Tinha pele morena, cabelos negros, bem lisos e olhos azuis. Era cabra forte, resistente, o vi levantar praticamente sozinho mais de uma igreja. Ser incansável, depois de desgastante dia de trabalho braçal e espiritual, encontrava tempo para se ilustrar e ainda me educar. Suas melhores características eram a alegria de estar vivo, servir e aprender. Não me lembro de vê-lo brabo, se ficava, com certeza escondia. Possível ser um sofredor que não demonstrava, caso fosse esse o caso, ele seria mestre nisso.

Seu sorriso é algo que nunca saiu de minha memória. Hoje, muitos anos se passaram, porém, às vezes quando tento ouvir o som do silêncio, este é interrompido por aquele sorriso sincero de Padre Janeiro. Já de muito refleti sobre este ato do criador: o sorriso. Deus já nos criou passíveis de sermos nossos próprios terapeutas. Nos tempos contemporâneos percebo multidões que buscam consolo nessas áreas alternativas (coisa inimaginável em meu tempo de infância e adolescência). Naquela época, quando tal palavra poderia soar como palavrão, Padre Janeiro, no primor de sua inteligência, percebera que o sorriso é a terapia celeste. Um dom nos concedido, aproveitado por aqueles que o percebem e valorizam. Talvez este tenha sido o grande legado deixado por meu preceptor em minha formação: a alegria de viver.

Depois de peregrinar com o regimento por todas as bandas do Ceará, chegamos a Fortaleza, foi quando pude conhecer o mar. De lá pegamos navio para Belém. A capital do Pará era a porta de entrada da Amazônia, ponto de encontro de milhares de nordestinos que buscavam prosperidade na construção da ferrovia. No porto de Belém, olhei assustado para aquela multidão, famílias inteiras, muitos jovens, indivíduos que deixaram mulheres e filhos a fim de encontrar a salvação de suas famílias. O encanto começou a se quebrar neste momento, pela primeira vez senti medo da decisão que havia tomado. Será que todas aquelas promessas seriam cumpridas, e se não obtivéssemos êxito, conseguiríamos retornar as nossas antigas vidas?

Tinha até a escolha de fugir e tentar alguns biscates até retornar a vida eclesiástica no Ceará ao lado de Padre Janeiro. Porém, o orgulho da juventude preponderou em minha decisão, já havia chegado até ali, agora não haveria mais volta. Uma palavra de Padre Janeiro não tive condição de compreender naqueles momentos, às vezes sentia-me agoniado naquela pequenitude da vila, confessava ardorosamente meus sentimentos ao padre, ele então dizia: "Serrinha, tu és jovem, preste atenção em sua condição, lembre-se de Jó, sujeito que resistiu pacientemente todas as tentações do capeta sem perder a fé em seu superior. Tenha este indivíduo como exemplo, chegará o momento de receber o que queres."
No meu caso, fugi apressadamente, deixei apenas bilhete, encontrava-me dominado pelo medo, mas não perdi o orgulho e deixei a paciência de lado.

Já no navio, subindo o Amazonas, ficara impressionado com a dimensão daquele rio, muitas das vezes não enxergava a outra margem, tinha a impressão que navegava no mar. Naqueles longos dias a alimentação foi escassa, munido apenas de uma rede que adquiri em Fortaleza e meus poucos pertences, não costumava sair muito da região do navio em que estava alojado.

Um dia, estava deitado, lendo um livro que ganhara de presente de aniversário em meus quinze anos de Padre Janeiro, era uma edição portuguesa antiga, datada do século XIX, da bela epopéia de Homero: a Ilíada. Já a lia pela décima vez, quando, distraído, olhei para meu lado esquerdo e percebi duas moças me observando e sorrindo. Logo que as vi percebi que uma delas recebeu um cutucão da amiga, o que a fez corar. Achei o acontecimento meio esquisito, não dei muita bola. Apesar que senti um pequeno arrepio quando meu olhar cruzou com a moça que acabara de se avermelhar.

A noite, não conseguira dormir, o medo da decisão que tomara às vezes me dava pesadelos, outras me incapacitava de pegar no sono. Resolvi levantar e caminhar pelo convés principal que se encontrava vazio. O céu estava muito estrelado e a lua tão cheia que até parecia dia. Fiquei impressionado a observar uma estrela que tinha brilho tão intenso que deixara rastro de luz nas águas do rio tão forte quanto a lua. No momento que me perguntava o que seria aquela estrela, ouvi uma voz feminina soar em minhas costas: é a Estrela D'Alva, aparece de madrugada, anuncia a chegada do Sol.

Fiquei perplexo com aquelas palavras, primeiro que não imaginava ser quase dia, segundo que trocara poucas palavras com passageiros e passageiras durante aquela estranha viagem e terceiro porque parecia que a moça havia lido meus pensamentos. Ela então continuou: fico te observando, tão quieto e pensativo. Fica apenas lendo aquele livro. Acho tão bonita a leitura, um dia quero aprender a ler e escrever, às vezes penso que poderia escrever todas as idéias que penso. Respondi sem pensar: a leitura e a escrita nos libertam da falta de saber, mas podem ser uma prisão de nossos pensamentos no papel. Até hoje me pergunto o porquê disse logo aquilo, mas foi o que se procedeu. A tréplica veio rapidamente: a prisão é ter tantas idéias, mas não ter a condição de libertá-las. Aquelas palavras me desarmaram, olhei meio pasmo para ela, sua resposta foi me beijar. Aquela sensação era algo que não esperava nunca ter pela primeira vez naquele momento.

A continuidade dessa história, não preciso entrar em detalhes, posso dizer, como no dito popular, que fiz barba, cabelo e bigode. Já experimentei de uma vez o que padre Janeiro tanto me alertava, o perigo iminente dos prazeres da carne. Digo, com sinceridade, que neste quesito passei a discordar de meu mestre.

O prosseguir da viagem foi mais tranquilo, já não me culpava tanto da vida eclesiástica que deixara. No dia seguinte a este acontecimento, a moça, denominada Adelaide (suas características físicas deixo viver apenas em minha memória) veio furtivamente até mim e entregou-me algumas folhas e um lápis e, em seguida, disse: não posso demorar, o pai não pode me ver, já descerei em breve no porto de Santarém. Consegui retirar da bagagem do meu tio, lembre-se de mim e liberte suas idéias. Partiu sorrateiramente e, assim como havia falado, desembarcou no dia seguinte na belíssima Santarém.

Após esse acontecimento, passei a relatar minha aventura, fiz como Adelaide me havia pedido, iniciei o processo de alforria das minhas idéias

2 comentários:

  1. Ahh, muito bom o seu texto. Não acho que ter feito "barba, cabelo e bigode" tenha sido algo necessariamente carnal. Essas coisas aí, que você descreveu não têm explicação e foram necessárias pra chegar ao seu "processo de alforria", eu acho. Lendo esse texto, precisamente onde você fala sobre o receio das escolhas, me remeto a um livro que li e que senti completa identificação, e sei que é passivel de fazer sentido:

    "é inutil procurar encurtar o caminho e querer começar, sabendo-se que existe a trajetória. e a trajetória não é apenas um modo de ir. a trajetória somos nós mesmos."

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  2. Valeu pelo comentário, mano! Certeza que faz sentido, bonita essa compreensão sobre a trajetória, realmente é passível de analogia com o que está versado no texto.
    Abraços!

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