quarta-feira, 16 de março de 2011

Uma tal de "modernidade"

Como é difícil crescer.

Em pleno sertão, passei a vislumbrar possibilidades nunca dantes imaginadas. Não seria possível um fruto da serra ter condições de romper submissões historicamente construídas.(Não que tivesse na época conhecimento pleno de tais submissões) Lembro hoje de Fabiano, que ao perceber o guarda amarelo uniformizado, sentiu-se impotente frente a presença estatal. Salve Graciliano Ramos! Será que seus filhos, após o retiro forçado pelas pressões socioculturais e climáticas, obtiveram o sucesso imaginado pelo casal errante. Baleia não poderia ter desencarnado em vão.

Contudo, voltemos aos vislumbres. Padre Janeiro concedeu-me a liberdade e o exílio ao ensinar-me as primeiras letras. A cada mergulho na imensidão literária sentia brotar um intenso conflito entre forças dicotômicas. Em tempos posteriores, vim a perceber que esses pólos sintetizariam uma nova compreensão de minha existência. 

A carreira eclesiástica foi-me oportunizada. Todavia, sentia uma poderosa energia emergir em meu âmago, não podia compreendê-la ainda, porém, observava um diferente pulsar do cordis quando ouvia extasiado na praça da vila os cordelistas cantarem histórias de cangaceiros, andarilhos, capoeiras e quilombolas.

Já vivia no Ceará quando, ao acordar, ouvi um som de trompetes, bumbos e trombones. Levantei subitamente, sai de casa, localizada aos fundos da igreja e atravessei a morada de Deus sem comunicar Padre Janeiro. Segui o som daquela banda e rapidamente a identifiquei como militar. Na praça estava um regimento. Perguntei a um transeunte do que se tratava aquela presença. Disse-me sem delongas: são os fardados do governador, parece que estão recrutando gente para trabalhar. Indaguei para onde, contudo, o interlocutor apressadamente distanciou-se. Meu espírito bisbilhoteiro levou-me a presença do chefe do regimento, este explicou-me que tratava-se de uma grande oportunidade de obter prosperidade. O governo planejava construir a maior ferrovia brasileira, em plena floresta amazônica, esta traria modernidade e desenvolvimento ao país e todos que participassem com êxito desse grandioso empreendimento ficariam marcados na história nacional, sem contar das grandes recompensas que receberiam. Não entendi a parte da "modernidade e desenvolvimento", foi a primeira vez que ouvi tais palavras, impossíveis de compreensão naquelas bandas de sertão. Contudo, a possibilidade de ter meu nome cantado pelos poetas de cordel, além dos tesouros possíveis de obter naquela viagem mexeram profundamente com meus ideais de juventude.

O Chefe, identificado por Januário, logo perguntou meu nome, data de nascimento e naturalidade. Já ia conceder meus dados, quando lembrei de Padre Janeiro. Sabia que este não concordaria com tal viagem, mesmo com todos os argumentos de grandes feitos, riquezas e essa tal de "modernidade". Meus recursos retóricos seriam incapazes de convencer meu preceptor. Resolvi sentar e refletir. Padre Janeiro sempre me alertava para cuidar dos impulsos, decidi acatar tal conselho. Olhei para aquele céu azulado, senti o forte calor nordestino, observei momentaneamente o espaço daquela vila, respirei o ar empoeirado do sertão e pronto, decidi. Não deve ter chegado à cinco minutos, para minha pouca idade, tempo demais para pensar sobre algo tão grandioso. Sentia que deveria ir, pois estava até com dificuldade de respirar com tal velocidade em que batia meu órgão vital. Padre Janeiro não poderia saber, não aguentaria ver sua decepção. Disse ao chefe que me alistaria. Perguntei o ônus. Januário me informou que não os teria agora, o governo arcaria com tudo, depois, com as riquezas obtidas, pagaria a dívida, porém, esta seria parte ínfima do montante que ganharia. E completou: e se apresse menino, partiremos depois do almoço, ainda passaremos em outros vilarejos. 

Retornei a igreja. Padre Janeiro indagou onde estava e o que aqueles militares queriam. Falei de um estranho recrutamento de trabalhadores, nada que havia me interessado. Janeiro pediu para realizar os trabalhos matinais, preparar a liturgia, pois teria missa a tarde. Não tardei a concluir o pedido. Retornei a minha casa, arrumei um pequeno farnel, reuni meus poucos pertences e preparei minha saída. Antes, resolvi deixar um pequeno bilhete de agradecimento a meu padre, referência de pai e professor. 

"Querido Padre Janeiro,
Parto para Amazônia, terra de riquezas e glórias por acreditar na modernidade. Agradeço por tudo que fizestes por mim até aqui. Tu me libertastes da ignorância, mas sentia-me preso nesta pequena possibilidade de vida. Sigo convicto!
Com amor e respeito,
Serrinha"

Soube partir sem deixar vestígios, perto do anoitecer já me encontrava distante da vida que deixava.

Minha juventude impossibilitou-me de perceber que trilhava para nova prisão, só a experiência foi capaz de fazer-me entender o que seria aquela tal de “modernidade”.

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